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domingo, 4 de abril de 2010

IN MEMORIAM de JOAQUIM DOS SANTOS

(Vilela, Cabeceiras de Basto, 13.4.1936 – Moimenta, Cabeceiras de Basto, 24.6.2008)

"Talvez começar por dizer que a morte de Joaquim dos Santos é a negação da própria morte. É-o para os crentes, para aqueles que o conheciam como padre e homem de crença profundamente cristã, comungando com ele a fé na vida eterna, a verdadeira vida que alcançamos depois da vida. Como também o é para os que não crêem, mas que o recordam como maestro de uma obra musical ímpar, prolífica e cheia de uma qualidade inspirada, de uma qualidade intocada, de uma qualidade verdadeiramente artística e excelente.

Joaquim dos Santos, Doutor Joaquim dos Santos, Padre Joaquim dos Santos, Maestro Joaquim dos Santos, permanece assim na memória e nas orações, e a sua obra, como a sua fé, granjeiam-lhe a eternidade.

E é, contudo, com um sentimento de tristeza e de perda que falamos de Joaquim dos Santos, que para além de artista e de membro da igreja, era um grande homem, um ser humano de excepcional bondade e gentileza e alegria e inteligência, destes que fazem realmente falta ao mundo. Eternidade rima, no seu caso, com saudade.

Outros lhe fizeram a biografia e o ensaio crítico, outros lhos farão, como é devido. Nós queremos-lhe fazer uma homenagem toda humana, recordar o poeta que tomou como mote, logo no início da sua carreira sacerdotal e musical, quando estudava em Roma no Instituto Pontifício de Música Sacra, os versos de Sebastião da Gama:

A corda tensa que eu sou,
o Senhor Deus é quem
a faz vibrar…

Ai linda longa melodia imensa!…
- Por mim os dedos passa Deus e então
já sou apenas Som e não
se sabe mais da corda tensa…


Recordar o poeta que escolheu, quando se lhe ofereceram as posições de relevo em âmbito profissional e artístico, quando se lhe abriam as portas do mundo, a fuga do mundo, recolhendo-se nesse pedaço de paraíso onde viveu toda a sua vida – a Casa da Casinha, em Cabeceiras de Basto – tendo por companheira e amiga a sua irmã, Mariazinha, e nos últimos anos um cão que, de tão fiel, morreu no mesmo dia do dono.

Recordar, enfim, o poeta que de música teceu a sua poesia, e que à Roma da sua juventude e dos seus anos de formação regressou no final da vida, edificando aquela que será, provavelmente, a parte mais significativa, interessante e eminente da sua obra, o auge da sua maturidade artística e humana, indissociavelmente ligada à igreja nacional de Santo António dos Portugueses.

Muitas vezes, a criação da sua música era como que a sublimação do som das palavras. A ligação do Maestro Joaquim dos Santos à poesia foi fortíssima desde o exórdio romano (1963-1968) quando ousou apresentar no concerto anual do Pontifício Instituto de Música Sacra uma composição para coro e piano – o piano era então considerado um instrumento pouco adequado para a música religiosa – baseada em Sebastião da Gama. A corda tensa que sou foi apresentada a 22 de Maio de 1966, executada pelo coro dos alunos do Instituto e pelo pianista Luca Lombardi, dirigidos pelo próprio compositor.

Foram depois inúmeras as vezes que recorreu às palavras para compor. Era aquilo a que chamava as suas “ousadias”. Tal foi o caso das cantatas A Noiva do Marão e Santo António dos Portugueses e do oratório Travessia, construídas sobre poemas do bispo de Vila Real, D. Joaquim Gonçalves, e todas três apresentadas em Santo António dos Portugueses. Recordamos também os poemas de Miguel Torga trazidos a Roma pelo Ançãble Vocal (27.04.2002) e todas aquelas composições baseadas em textos bíblicos, geralmente concebidas para o serviço religioso e divulgadas durante anos na Nova Revista de Música Sacra e em Música Nova, publicações periódicas que fundou e com as quais colaborou assiduamente.

A par do canto gregoriano, que veio estudar a Roma e cujos ecos sentimos em muitas das suas composições, outra fonte de inspiração primordial eram as melodias populares, recordação que vem das origens rurais em que a música fazia parte do quotidiano, no trabalho e na festa, e das tradições da sua própria família. Daí serem Cantigas da Minha Terra e Viva a pândega as primeiras obras que apresenta publicamente, ainda no tempo de frequência do Seminário Conciliar de Braga (18.03.1961) e toda uma vasta produção posterior, que tem um duplo e importantíssimo objectivo.

Por um lado, aquele da recolha etnográfica de temas tradicionais, passados informalmente de geração em geração, e por isso em perigo de se perderem; a sua fixação qualificada na pauta musical, e os arranjos que lhes fez posteriormente, adquirem assim um valor de conservação histórica, mas também o de inspiração de obras inovativas, na linha do que fizeram os maiores compositores portugueses do século XX. Por outro lado, e aqui se revela um generoso aspecto pedagógico e de incentivo das artes, as obras do Maestro eram feitas com o intuito de serem executadas, independentemente das capacidades técnicas dos executantes. Por isso, por longos anos, toda a sua produção foi considerada “menor”, associada redutoramente às suas numerosas composições para banda e para a liturgia. Um artista de grande fôlego criativo, mas que nunca se coibiu de escrever música para todos, de qualificar a vida dos mais humildes com a sua música, dedicando-lha e oferecendo-lha.

O encontro com Santo António dos Portugueses permitiu a Joaquim dos Santos, também neste capítulo, dar mostra da sua imensa capacidade inventiva, ilustrada e popular em simultâneo. Os responsórios para coro e órgão Christus factus est e Crucem tuam trazidos pelo Ançãble em 2001, o Prologus, 6 Impressões musicais do Evangelho de S. João executados pelas pianistas Ana Telles em 2002 e Rosa Villar Córdova em 2003, ou as 4 canções populares portuguesas (“Ó tia Aninhas”, andantino, “Espadeladas”, moderato assai, “Debaixo da oliveira”, andante cantabile e “O ratinho malcriado”, allegro grazioso) tocadas pelo Quintetto Metamorphosis em 2004 são disto exemplo. Pondo em destaque as raízes populares, eles são sem dúvida peças de música erudita, interpretada por instrumentos eruditos, em ambiente e para um público erudito.

Mas o encontro com a igreja nacional de Roma, feito através do seu reitor, Monsenhor Agostinho da Costa Borges, com quem estabeleceu rapidamente uma amizade profunda, constituiu em muitos outros aspectos um momento altíssimo na carreira de Joaquim dos Santos. Este fez-se através de Isaías Hipólito, aluno de Joaquim dos Santos no Seminário Conciliar de Braga, que orientara como organista e director os serviços litúrgicos da igreja de Santo António dos Portugueses, enquanto estudava em Roma, no final da década de 90.

A sua primeira obra executada na via dei Portoghesi foi, a 10 de Junho de 2000, Lamentações do Profeta Jeremias, pela então denominada Capela Musical de Santo António dos Portugueses, dirigida pelo Maestro Massimo Scapin. Assim se iniciava uma colaboração intensa, que não só o induziu a criar obras propositadamente para a igreja dos Portugueses, mas a fazê-lo muitas vezes em ocasiões de especial relevância dentro da agenda cultural da instituição, como fossem os dias de Portugal e das Comunidades Portuguesas, na festa do patrono, Santo António, ou nas celebrações da Imaculada Conceição.

Quatro anos após a sua estreia em Santo António, pelo dia de Portugal, Joaquim dos Santos trouxe em primeira audição um Concerto per pianoforte ed orchestra, executado por Ana Telles e pela Orchestra Nuova Amadeus dirigidas pelo Maestro Jean-Sébastien Béreau – um desafio lançado direcatmente pela pianista e pelo maestro ao compositor, que o aceitou. Para celebrar o patrono da igreja compôs a cantata Santo António dos Portugueses, em 2002 (com a participação do barítono Ettore Nova e a direcção de Anne Randine Overrby), a sinfonia Roma Eterna, em 2003 (direcção de Ovidiu Dan Chirila), e o Concerto para violino e orquestra, em 2005 (com o jovem Emanuel Salvador). Enfim, por ocasião da Imaculada Conceição, vieram a cena A Noiva do Marão em 2000, Carmen Fatimale e Arma virosque em 2005, Le forme dello spirito, em 2006 e o Concerto per violoncello e orchestra, em 2007 (com o violoncelista Simonpietro Cussino).

Estes e outros artistas que executaram obras de Joaquim dos Santos – e muitos houve para quem o Maestro escreveu propositadamente, tais como Giampaolo Di Rosa, Vítor Matos e Domingos Castro para não repetir nomes – recordam como na vida do Maestro música e amizade andassem a par: tantas amizades nascidas através da música e tanta música inspirada pelas amizades. A generosidade que o distinguia transpunha-se para a pauta; de facto, são propositadamente reduzidas as suas notações agógicas, dando oportunidade aos músicos de participarem na sua criação artística, interpretando mais livre e individualmente as linhas máximas da melodia que compusera. A música era princípio e fim e veículo das suas emoções, e por isso lhe era fácil fazer amizades através da música.

E talvez porque pusesse “a sua alma de sacerdote em cada coisa que fazia”, como costumava dizer, a música (princípio e fim e veículo das emoções) era matéria do seu máximo rigor e respeito enquanto expressão de uma inspiração divina, a “corda tensa” por onde passavam os dedos de Deus. E era assim que o seu trabalho se desenvolvia, amorosa e aturadamente, matutino, quotidiano, grave, ao som das águas correntes que atravessam os fundamentos da casa paterna, no seu escritório debruçado sobre o verde total do Minho, o Tâmega a correr em baixo e ao fundo a “Noiva do Marão”, o Santuário de Nossa Senhora da Graça, que lhe inspirou em 99 a magnífica cantata. O trabalho a par das orações que fazia regular e canonicamente, na capela dessa mesma casa

Em Roma permanece a recordação quase meia centena de obras apresentadas em oito anos, a maioria das quais em estreia absoluta em Santo António dos Portugueses, compostas propositadamente para esta igreja e para os seus artistas, a um ritmo admirável e inspirado, como se nele houvesse a percepção de que o tempo era escasso e precioso. Meia centena de obras correspondentes a cerca de trinta deslocações do compositor e de sua irmã à via dei Portoghesi, onde se sentiam bem, como em casa própria. Concertos que não esquecemos, em que não esquecemos esse grande homem, simples e genial, que falava com o seu sorriso."


in http://www.ipsar.org/modules.php?name=News&file=article&sid=12
por Francisco de Almeida Dias
Roma, Julho de 2008
Publicada por Nuno em 15:33 0 comentários
para ouvir... "Largada" - poemas do Mar, Miguel Torga


Largada.

Foram então as ânsias e os pinhais
Transformados em frágeis caravelas
Que partiam guiados por sinais
De uma agulha inquieta como elas.

Foram então abraços repetidos
À Pátria-Mãe, Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
Às palavras cansadas
Que se ouviram no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
Cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.

Miguel Torga (1907 – 1995)


Publicada por Nuno em 15:18 0 comentários
Etiquetas: interpretação de Ãnça-ble vocal
Sábado, 12 de Julho de 2008
...o Maestro...13 de Abril de 1936
"Frequentou os seminários arquidiocesanos de Braga, onde iniciou os estudos musicais, que desenvolveu sobretudo sob orientação de Manuel Faria. Do seu principal mestre recebeu os primeiros impulsos para a composição musical, de que resultaram algumas obras, ainda como estudante; mas desse contacto resultou, sobretudo, o gosto pela composição, que implicou a exploração de novos caminhos musicais, mesmo se bastante distintos do mestre.

Ordenado presbítero e após breve passagem pelo Conservatório de Música de Braga, prosseguiu, a partir de 1963, os estudos em Roma, no Pontifício Instituto de Música Sacra, como bolseiro do Estado Italiano e da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1965 foi premiado pelas suas composições, que foram executadas em concerto.

Durante a sua estadia em Roma, fez ainda o curso de direcção e interpretação polifónica no Conservatório de Santa Cecília.

Regressado a Portugal, levou uma existência simples, entre a leccionação musical a vários níveis e, sobretudo, à composição. Por temperamento avesso a todo o tipo de protagonismo, durante a sua vida foi algo ignorado pelos seus compatriotas. Por outro lado, o seu estilo absolutamente oposto a qualquer género de exibicionismo ou snobismo contrastava com o seu entusiasmo pelas inovações musicais, sobretudo do séc. XX. Isso permitiu-lhe juntar, na sua basta obra, trechos de enorme simplicidade e profunda raiz popular com partituras elaboradas, ao nível da melhor produção musical contemporânea.

Das suas criações de maior vulto destaca-se um bom número de obras corais sinfónicas (Passio et mors D.N.J.C secundum Lucam, o oratório Travessia, as cantatas Le Forme dello Spirito, Sonho do Infante, Noiva do Marão, Santo António dos Portugueses, vários Stabat Mater, vários Te Deum, orquestração da Missa em honra de N.S de Fátima de Manuel Faria, etc.) assim como não menos significativo conjunto de obras de câmara (algumas com recurso a instrumentos como marimba, bandolim, bandocelo, etc). É também abundantíssima a sua produção coral, desde simples harmonizações de canções populares, passando por trechos litúrgicos de vários níveis de exigência, até grandes obras para coro, com acentuado poder descritivo e arrojadas soluções, que revelam considerável maturidade no conhecimento e no domínio da técnica vocal específica, para além de uma capacidade expressiva extraordinária, com recursos relativamente simples.

Do conjunto inabarcável da sua produção musical poderia destacar-se o tratamento da orquestra (desde concertos para violoncelo (2), violino, flauta, clarinete, piano e até dois pianos e orquestra), que demonstra de forma suprema na sinfonia “Roma Eterna”. Possivelmente por ter crescido numa família em que o som da flauta acompanhava o dia-a-dia; talvez por essa infância ter decorrido num dos recantos mais bucólicos do Minho; talvez também pelas influências musicais de outros compositores (com saliência para Stravinsky), é especialmente exemplar o seu tratamento dos sopros. Por um lado, salienta-se a mestria com que introduz e combina os metais, que demonstra uma convivência de décadas, através da prática de direcção de bandas; por outro lado, sobressai sobretudo a beleza bucólica e simultaneamente arrojada com que joga com as madeiras, em continuação pessoal e inovadora de passagens típicas de Stravinsky. Ritmicamente, para além do compositor russo, é clara a influência de Britten, que também deixou a sua marca em certa predilecção pela percussão.

Em obras coesas, perfeitamente unitárias e completas, consegue um estilo que acolhe, sem preconceitos nem discriminações, os contributos de diversas fases da história da música. Desde o gregoriano aos nossos dias, sem a falsidade da mera citação, mas também sem estéreis subjugações a escolas ou estilos rígidos. De forma singelamente pessoal e única, deixando para trás academismos de todo o género, antecipou e prosseguiu, numa coerência rara, uma espécie de «pós-modernidade» musical, muito para além de qualquer modernidade forçada ou de qualquer classicismo anacrónico. É, pelo contrário, a simplicidade do seu pensamento musical que determina os recursos a utilizar, resultando disso obras claramente contemporâneas e, simultaneamente, naturais, evidentes, por isso acessíveis ao público com um mínimo de sensibilidade musical."


por Professor João Duque
Publicada por Nuno em 7:17

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