Nota: isto não é música. Mas soa tão bem!!!
Guerra Junqueiro (1893 – Impresso no Porto em 1902)
Num grão de trigo habita
Alma infinita.
Alma latente, incerta, obscura,
Mas que geme, que ri, que sonha, que murmura.
Quando a seara é ceifada, acaso o grão
Terá dor? Porque não!
Um grão de trigo,
Mil anos morto num jazigo.
Dêem-lhe terra e luz,
E ei-lo germina e cresce e floresce e produz.
Vede lá, vede lá
Quanto no eirado o trigo sofrerá!
Pelo malho batido num terreiro,
Um dia inteiro!
E um dia inteiro, sem piedade,
Coitadinho! rodado pela grade!
Depois a tulha celular,
A escuridão sem ar!
Depois, depois, oh negra sorte !
Entre rochedos triturado até à morte!
Oh pedras dos moinhos, mal sabeis
O que fazeis!
Quantos milhões de crimes por minuto,
Pedras de coração ferrenho e bruto!
E as águas da levada vão cantando,
Enquanto as pedras duras vão matando!
E a moleirinha alegre também canta,
E ri a água, e ri o sol, e ri a planta!...
Enfarinhada, branca moleirinha,
É pó de cemitério essa farinha!...
Loiro trigo a expirar por nosso bem.
Sem um ai de ninguém!
Loiro trigo inocente.
Cuja morte horrorosa ninguém sente!
E é por isso que ao fim do teu martírio
És cor de lua, és cor de neve, és cor de lírio.
Bendito sejas!
Simples por nós viveste,
Puro por nós sofreste,
Mártir por nós morreste!
Bendito sejas!
Perdeste a vida p'ra nos dar vida,
Foste a imolar p'ra nos salvar;
Bendito sejas!
Bendito sejas,
Trigo morto, cadáver fecundante,
Ressuscitando em nós a cada instante!
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Trigo! corpo de Deus, — Pureza e Dor
Nossa vítima e nosso redentor.
Com quantos grãos de trigo um pão se fez?
Dez mil talvez?
Dez mil almas, dez mil calvários e agonias,
Todos os dias.
Para insuflar alentos na alma impura
Duma só criatura!
Homem, levanta a Deus o coração,
Ao ver o pão.
Ei-lo em cima da mesa do teu lar;
Olha a mesa: um altar!
Ei-lo, o vigor dos braços teus,
O pão de Deus!
Ei-lo, o sangue e a alegria
Que teu peito robora e teu crânio alumia!
Ei-lo, a fraternidade,
Ei-lo, a piedade,
Ei-lo, a humildade,
Ei-lo a concórdia, a bem-aventurança,
A paz em Deus, tranquila e mansa!
Comer é comungar. Ajoelha, orando,
Em frente desse pão, ou duro ou brando.
Antes que o mordas, tigre carniceiro,
Ergue-o na luz, beija-o primeiro!
Depois devora! O pão é corpo e alma
Em corpo e alma
O comerás.
Tigre voraz!
São dez mil almas, brancas, cor de lua,
Transmigrando divinas para a tua!
Sepultura do pão! boca de humanidade!
Sob o infinito azul da imensidade
Prega a Verdade!
Boca harmoniosa, augusta voz da natureza.
Canta a Beleza!
Boca divina, boca em flor,
Verte o perdão, sorri à Dor, unge-a de Amor!
Beleza, Amor, Verdade,
Eis a Trindade!
Três Deuses, juntos afinal
Num só Deus imortal.
A humanidade é seara imensa em chão de areia,
Que Deus recolhe e Deus semeia.
E cada homem, quer o rei, quer o mendigo,
É na seara de Deus um grão de trigo.
E a toda a hora, a todo o instante, há milhões de anos,
Searas sem fim de espíritos humanos
Brotam, florescem, crescem, são cortadas,
E entre as mós do destino trituradas.
E eis a farinha ideal, o fermento de dor,
Que alimenta a Verdade, a Beleza, o Amor!
De maneira que vós, homens pigmeus,
Na terra sois o pão de Deus!
A vossa alma é a claridade
Que ilumina a Verdade.
É a hóstia de luz, no mundo acesa
Pela Beleza.
É o relicário da roxa e dolorida flor,
Donde goteja o mel do Amor.
Homem!
Pela Verdade, intrépido e sereno,
Emborca a taça do veneno!
Pela Verdade inteira.
Dá teu corpo ao baraço, ao cutelo e à fogueira!
Pela Verdade, sem pesar,
Teus filhos deixarás e deixarás teu lar!
Homem!
Pela Beleza sacrossanta,
Adora e canta!
Pela Beleza, música de Deus,
Une-te a Deus!
Pela Beleza ideal, ideal eucaristia,
Faz do universo Espirito e Harmonia!
Homem!
Dá pelo Amor ao triste e ao desvalido
Teu coração, teu pão e teu vestido!
Pelo Amor, com teus lábios virginais
Beija lepras e cancros de hospitais!
Pelo Amor, pelo Amor, como Jesus,
Sorri à Dor pregado numa cruz!
Beleza, Amor, Verdade,
Eis a Trindade,
Eis o teu Deus.
Homem!
Vive por Deus!
Sofre por Deus!
Morre por Deus!
E bendito serás na eterna paz.
Porque ao fechar os olhos teus,
Trigo de Deus, absorto em Deus descansarás!
Oremos:
Trigo de Abril, riso e verdura,
Dá-nos a candura!
Trigo de Agosto, oiro que alumia,
Dá-nos a alegria!
Trigo da foice, trigo da grade,
Dá-nos a humildade!
Trigo da azenha, poeira de lirio,
Dá-nos o martírio!
Trigo do trigo, trigo da mesa,
Dá-nos o amor e a dor, a paz e a fortaleza!
Trigo, dá-nos a candura!
Dá-nos a alegria!
Dá-nos a humildade!
Dá-nos o martírio!
Dá-nos o amor e a dor, a paz e a fortaleza!
Dá-nos ao corpo tudo isto,
Dá-nos à alma tudo isto,
E faremos de nós o pão de Cristo,
O pão de Deus, o pão do Bem,
O pão da Eterna Glória, o pão dos pães. Amen.
Sem comentários:
Enviar um comentário